quinta-feira, 16 de março de 2017
Cabeça de Bode - Fúlvio Alsan
Aquele largo sorriso. O tipo de sorriso que Fagner conhecia muito bem e sabia que existia algo por trás daqueles dentes de tubarão que não seria tártaro amarelado. Algum tipo de brincadeira sacana ou nova piada de mau gosto.
– Tenho uma novidade cara. Algo que você vai querer saber. É sobre Alanda. – Disse Gleison.
– Alanda já deixou de ser novidade há muito tempo. Passado bem passado e enterrado. – A resposta soou com um tom de vaidade masculina, mas no fundo havia um tom de incômodo, por relembrar algumas cenas do antigo relacionamento.
– Só que essa novidade é muito interessante. Não sei se você vai gostar, mas que é interessante, putz, isso é.
Há alguns meses atrás, Alanda tinha sido um caso fugaz. Do tipo que aquece no tempo frio e queima no tempo quente. Do tipo que a necessidade física falou muito alto. Mas o combustível da paixão queimou rápido demais para ele. Para Alanda poderia queimar por anos a fio, quem sabe para sempre.
– A única coisa que me preocuparia seria se o preservativo rompesse. Não rompeu, não é meu. – Disse Fagner secamente, mas após um momento de insegurança, completou. – Ficou grávida?
– Cara não, mas a depender de sua opinião, antes fosse. Ela comprou um bode. – Aquele sorriso se alastrou em seu rosto.
– PQP. Você me inventa cada uma. Eu lá quero saber de porra nenhuma de Alanda, muito menos se ela tá arranjando bichos de estimação.
– Mas aí é que está o xis da questão. O bode tem seu nome.
Mil pensamentos invadiram a cabeça de Fagner. Crença e incredulidade e pena. Mas, sobretudo olhou preocupado procurando indícios se Gleison falava a verdade ou não.
– Palhaço.
– Ah tá. Eu acabei de me encontrar com ela vindo da feira livre. Ela trazia o bicho preso numa corda como se fosse um cachorro. Cara o bicho era enorme e… todo preto. – O sorriso sumiu em seu rosto.
Fagner tentava manter o olhar cético, mas seus gestos já demonstravam desconforto.
– Ela disse: Ele me fez perder a cabeça. Agora quem vai perder a cabeça é ele. Mas não no sentido figurado. Um pelo preço de dois.
– Cara, a vida é dela, ela faz o que achar melhor. – Fez um gesto de desdém e foi se afastando, já demonstrando mal humor.
Estava a caminho do trabalho no bar de seu pai e já estava atrasado. Detestava ser chamado atenção, mas agora em sua cabeça ecoava outra preocupação. As palavras do amigo iam e vinham e ele imaginava se seria mesmo verdade e como seria as circunstâncias, local e principalmente o que aconteceria com o bicho. Pessoas que se dizem apaixonadas fazem coisas malucas, mas o que viria depois? Um ritual? Um golpe? Dois golpes? Sangue?
Aquele pensamento lhe deu arrepios e durante o trabalho, diversas vezes fora chamado atenção pelo pai que tinha que lhe pedir duas vezes para que algo fosse feito.
– Está com a cabeça em nuvens de algodão. Vou lhe dar uma porrada que com certeza vai ficar. – Disse o velho mal humorado. Alguns instantes depois, sentiu algo estalar e doer nas costas por ter deixado a porta do freezer vertical aberta. Aquilo nunca tinha acontecido e o próprio Fagner reconheceu que o tapa foi merecido e relativamente fraco.
Disse ao pai que fecharia o bar. O pai olhou de cima a baixo e torceu o lábio numa careta desconfiada, fez mil recomendações e então saiu para ele próprio beber algumas saideiras antes de chegar em casa.
O movimento às terças era sempre, como seu pai dizia, uma cerveja aguada. Fagner apenas esperava o tempo passar para fechar o bar e então ir pra casa. Mas não queria. A partir das zero hora seria a data de seu aniversário e ele queria estar acordado e de preferência bebendo algo. Sentou-se em uma das mesas com um pequeno prato de frios, uma garrafa de cerveja long neck e o celular dispostos um ao lado do outro. Abriu a garrafa girando a tampa e bebeu metade da cerveja em grandes goles. Pegou o celular e acionando a tecla de contatos, tentou achar alguém para ligar àquela hora. Queria mesmo ligar para algum caso antigo de suas ex namoradas que pudessem salvar sua noite.
Por muito pouco não jogou o celular longe. Susto e desprezo se seguiram, quando o celular vibrou em sua mão e viu a foto de Alanda brilhar na tela. O ímpeto de jogá-lo longe permanecia, mas julgou não valer à pena, mesmo que o celular custasse uma única moeda de um real. Atendeu no viva-voz.
– Diga. – Falou secamente.
– Queria saber como você está?
– Estava bem, agora nem tanto. – Após um breve instante de silêncio, completou. – Era só isso?
– Tudo continua como antes, não é?
– Não. Tudo continua do mesmo jeito que está.
– Tudo bem então. Só queria ter certeza disso.
Fagner permaneceu em silencio. Era tão estranho sentir desprezo de forma tão intensa, quando há alguns meses atrás esteve tão íntimo de Alanda.
– A partir da meia noite, se torna seu dia. Você fica mais velho.
– Pois é. Era só isso? – Um novo silêncio se prolongou. Fagner já estava prestes a desligar, quando Alanda completou.
– Certo ou errado, fazemos as coisas que achamos que deve ser feito.
– Ótimo.
Ele desligou o telefone, mas algo que ouviu ou pensou ter ouvido lhe deixou intrigado. Um riso. Misto de amargura e sarcasmo. Aquilo o incomodou. E havia um assunto não mencionado. Ele esquecera totalmente e tinha que esclarecer. A conversa do estranho assunto que teve com Gleison. Seria realmente verdade que ela tinha comprado um animal de estimação e lhe dado seu nome?
Retornou a ligação que foi atendida no primeiro toque. Risos. Não eram nítidos e o celular captava sons do ambiente.
– Alô. Alanda? Eu estou lhe ouvindo atenda.
Ela ria. Cantarolava uma música em inglês. De forma lenta e melosa.
– “Happy birthday to you”.
Ele já tinha ouvido aquela música. Uma velha versão em que uma moça loira cantou para alguém. Um presidente de algum lugar.
– “Happy birthday to you”
Ele sabia que era a música de parabéns que ela cantava pra ele. Mas havia outro som. Após cada frase um som baixo metálico se seguia. Algo sendo raspado. Algo sendo tocado contra algo. De forma lenta e prolongada.
– “Happy birthday”, Fagner meu amado.
Algo estava sendo afiado.
– “Happy birthday”… – Uma pausa e algo, um animal soltou um breve berro, completando aquele coro macabro, e a frase foi completada: “to you”.
Fagner não quis acreditar. Olhou o celular como se ele fosse um monstro estranho e o soltou na mesa, que após bater na quina, caiu no chão. Queria negar aquele momento, mas não conseguiu. Olhou para a garrafa de cerveja consumida um pouco abaixo do meio e aquele era o aval de que estava sóbrio.
– Que porra de loucura é essa?
Olhou o relógio na parede e os ponteiros marcavam onze horas. O pouco de alívio que sentiu se tornou em desespero ao ver o ponteiro dos segundos preso num eterno movimento estagnado. O impulso era dado, mas logo voltava a marcar os mesmos vinte segundos.
Um senso de urgência o arrebatou. Tinha que correr, mas não sabia para onde. Tinha que saber as horas, mas o celular estava apagado com a queda. Tinha que tentar algo. Tinha que tentar evitar que aquilo acontecesse. Mas o que iria acontecer? Claro que sabia a resposta. Não acreditou na história de Gleison, porém era tudo verdade. Alanda tinha comprado um animal, um bode, um grande e negro bode e lhe dera um nome. Seu nome. Um bode que seria sacrificado à meia noite do dia de seu aniversário.
Pegou o celular mesmo apagado e saiu correndo deixando o bar aberto. À frente da calçada tentou ligar o celular e ainda nada. Provavelmente seria a bateria que estava folgada ou com mau contato. Abriu o celular com mãos tremulas e tentou se decidir pra onde iria e o que faria. Lembrou que Alanda conversou certa vez com ele sobre alguns assuntos daquele tipo. Ele fora duas vezes lá à noite e não gostou. Não voltou mais porque não era o tipo de programa que gostava de fazer. Ela, Alanda, dizia que não se importava com quem morava lá. Que aqueles que estavam lá eram silenciosos e não lhe criticavam. Lá ela se sentia livre. Correu enquanto tentava ligar novamente o celular. Não queria ir, detestava saber que não tinha outra opção. Seguiu correndo em direção ao jardim que ficava numa encruzilhada dentro do cemitério da cidade.
Os dígitos vermelhos do relógio da praça marcavam quinze minutos para meia noite, mas saber a hora apenas aumentou seu pânico. Ele estava a um quilometro de distância do cemitério da cidade. Não sabia exatamente a distância, mas sabia que tinha que correr bastante pois a louca da Alanda estava para sacrificar um animal, e ele sabia que tinha que fazer tudo o possível para evitar. Caso contrário…
– Não sei. – Disse num desabafo desconsolado, por entre os sons da respiração ofegante. – Que merda, que merda.
Lembrou dos rituais que vira em alguns filmes e lembrou-se de fogueiras e pentagramas. Sacrifícios de virgens e lembrou que por fim, algo dava errado. Mas a criatura, a criatura das trevas sempre aparecia, sempre possuía uma das pessoas. O vento soprava e levava folhas secas e apagava velas acesas. Sombras negras se contorciam e formavam uma única que crescia e tomava uma forma dantesca. Possessão. Gritos. Sangue.
– Puta merda. – Disse ofegante e gritou mentalmente o nome de Alanda, e já organizava idéias de fazer algo para se vingar. Uma forma de puni-la por essa brincadeira. – Brincadeira? Ela me paga. Mais cedo ou mais tarde, vou ter que dar o troco.
As ruas estavam desertas e poucos carros passavam. Abaixo dos postes de luzes amarelas, sua sombra corria transformada num ser elástico que ora estava à frente e em outro instante seguia se alongando atrás dele até sumir para surgir novamente à sua frente.
Avistou o muro branco decorado de vãos no formato de cruzes, conferiu as horas no celular que conseguira ligar enquanto corria e assustou-se: faltavam três minutos para meia noite. Não soube se aquela hora condizia com o relógio eletrônico que vira à alguns instantes atrás. Não sabia nem mesmo se aquele relógio da cidade marcava a hora certa. Não teria tempo de ir até o portão principal. Se repreendeu ao lembrar que àquela hora o grande portão de antigos ornamentos estaria trancado de qualquer forma. Pulou o muro num movimento ágil de braços e pernas e pisou em algumas covas de terra recém criadas antes de chegar em um dos caminhos calçados de pedra branca e preta.
– Foi mal pisar em sua casa, broder, mas é urgente. Ou corro, ou depois agente se vê. – Disse num murmúrio baixo, ou pensou ter dito. Por fim se sentiu desculpado por pelo menos reconhecer que aquilo poderia significar falta de respeito.
O devaneio se dissipou e ele diminuiu os passos para um andar rápido. A respiração ofegante exalava um pouco do odor do malte da cerveja e Fagner sentiu a garganta e o peito queimar devido ao esforço físico que não estava acostumado. Aos poucos a respiração forçada foi diminuindo voltando ao normal. Alanda devia estar em algum lugar do jardim gramado de pequenos arbustos. Olhou as horas no celular e o tempo voou: passavam três minutos da meia noite. Estava realmente atrasado. Estava realmente perdido. Apesar da escuridão não ser completa, Fagner não sabia para onde deveria ir.
– E agora? E agora? – Perguntou desconsolado tentando enxergar algo além da penumbra.
Parou. Havia o som do vento nas folhas e junto dele, como se desejasse estar oculto, tinha um som estranho. Seguiu em sua direção e quanto mais se aproximava, mais sentia-se surpreso e enojado. Uma litania baixa, que pareciam proclamar preces, porém de forma bastante agourenta e grave como se os oradores estivessem com suas cordas vocais dilaceradas. O escuro da noite pareceu terrivelmente ameaçador, mas conteve-se e continuou seguindo aqueles sons estranhos.
Era uma área ampla em forma de círculo cercada de arbustos baixos, iluminada pela luz artificial de um distante poste de iluminação. No centro daquele local, muitas velas estavam acesas e iluminavam o local, colocadas seguindo um desenho que Fagner não soube identificar de imediato. As várias linhas desenhadas num cal branco, iam e vinham em várias direções e no centro onde se encontravam um grande animal tão negro quanto a própria noite estava amarrado no centro. Um bode. O bode que tinha seu nome. Seus pelos negros brilhavam reluzindo nas chamas das velas e seus longos chifres se espiralavam e Fagner julgou que poderiam formar longos labirintos em sua extensão. Alanda estava em pé, imóvel, vestida num manto escuro e nas mãos à frente do corpo de forma como se a estivesse oferecendo a alguém, segurava uma faca de longa lâmina brilhante. Lembrou-se do som da lâmina sendo afiada e surpreendeu-se: era realmente grande e assustadora. Os sons de vozes estranhas, que ora eram graves e ora eram estridentes vinham de uma pequena caixa acústica em que um pendrive estava plugado e Alanda balbuciava todas as frases que a voz dizia naquela litania.
O primeiro impulso foi de voar, pegar aquela faca e cometer um ato insano. Se conteve. Caminhou lentamente, contendo aquela vontade homicida, e parou na borda do grande desenho mapeado no chão. Tinha a forma principal de uma estrela com vários outros desenhos, mas Fagner sabia que era um desenho que simbolizava forças ocultas.
– Que palhaçada é essa? Você é maluca? – Fagner Perguntou e abriu os braços dando ênfase à pergunta.
– Que bom que você veio meu amor. Estava te esperando. – Alanda respondeu com naturalidade. O tom meigo na voz era o mesmo de tantas outras vezes quando tinham encontros amorosos.
– Amor porra de nada. Eu quero saber que merda de teatro é esse? – Fagner se aproximou da pequena caixa enquanto falava, e sua pergunta terminou com um chute desferido no objeto que voou a quatro metros de distância e o som medonho parou no mesmo instante. O pendrive para surpresa de Fagner ainda permaneceu conectado. Seu pé dou um pouco, mas a dor lhe trouxe satisfação. Imaginou poder chutar a responsável por tudo aquilo e teve certeza que não seria apenas um golpe.
Alanda permaneceu imóvel em silêncio. Olhava fixamente para Fagner.
– Responda Alanda. – Disse, mas ela permaneceu em silêncio e ele insistiu num grito. – Responda!
– O amor é uma lâmina que fere. Uma lâmina afiada. Eu estou sangrando, sabia? Todos esses dias desde que você desapareceu eu estou me esvaindo em sangue e em lágrimas.
– Não venha com essa não. Não venha com essa de amor que não cola. Você é insana.
– Insanidade apaixonada pode acontecer. O amor permite o cometimento de atos insanos. Somente assim ele se torna reconhecido. Amor derrotado, amor abandonado, isso nunca.
– Você é maluca. Você que confundiu as coisas. Amor não tem nada a ver com isso.
– Se eu estou sangrando. Você também tem que sangrar. – Disse Alanda, se aproximou do animal no centro do símbolo e acariciou o pelo em sua nuca.
– Você é louca. Você é … louca. – Fagner não tinha outra opção. Olhou para a linha no chão e não sabia se podia ou não pisar ali, se podia entrar ali. – Olha, isso acontece. Decepção acontece. Depois de transar as mulheres sempre…
– Não entre! – Alanda gritou. – Não entre, estou avisando.
Fagner olhava para Alanda. Tinha que tentar algo. Tinha que tentar se aproximar e no melhor momento tentar evitar que algo acontecesse. Tentar tomar a faca da mão de Alanda e se conter para ele mesmo não cometer um sacrifício tendo ela como vítima. Olhou para os grandes círculos que bordejavam o pentagrama e imaginou serem apenas linhas desenhadas no gramado ralo, deu um passo e após outro entrou no símbolo. Pensou ter sentido um vento quente no rosto, mas achou que foi apenas impressão.
– Eu disse para não entrar. Eu disse para não entrar.
– Calma. Vamos conversar.
Fagner percebeu que sua intenção de impedir que algo acontecesse foi descoberta. Notou com surpresa que a expressão de Alanda mudou bruscamente demonstrando ódio. Ainda estava distante para tentar algo e se errasse o momento, ele mesmo poderia ser golpeado.
– Calma Alanda. Vamos conversar. Podemos conversar?
– Agora você quer conversar? Não. – A voz amarga de Alanda beirava às lágrimas. – Se eu perdi a cabeça por amor. Você também deve perder.
Alanda ergueu a imensa faca e seu braço se enrijeceu preparando para o golpe.
– Não. Não faça. Por favor. – Fagner se ouviu implorando.
Não houve o golpe fatal no pescoço do animal. A faca ficou suspensa no ar vibrando pela força que era segurada.
– Diga. – Disse Alanda com uma voz cheia de rancor.
– Eu… Eu não gosto mais de você. Eu gostei no início, mas depois passou. Isso é normal, acontece. Algumas pessoas são difíceis de apaixonar, de amar. Eu mesmo sou assim. O que acontece é que ficamos apenas pra ter relações com outra pessoa e mesmo assim com o tempo acaba perdendo a graça.
– Não é isso que eu quero ouvir. – Disse Alanda com a voz seca. Seu braço ainda levantado perdera o vigor. A faca agora estava apenas levantada sem oferecer a ameaça de alguns instantes atrás. Fagner respirou um pouco mais aliviado, porém estava confuso. Não tinha certeza do que dizer.
– Bem… não sei. Quer dizer, algumas pessoas acabam ficando por conveniência. – Fagner detestou se ouvir dizer aquilo, mas não tinha outra escolha. Alanda sorriu. – Amor e sexo tem que ser espontâneo e recíproco, e não dado como favor ou esmola. O que podemos começar aqui não será um recomeço, mas sim um prolongamento de um final.
A faca na mão de Alanda foi descendo agora lentamente sendo seguida pelos olhos de Fagner, até ficar rente próxima à perna. Num movimento rápido e ágil a faca se ergueu e cortou facilmente a corda que prendia o bode na estaca. O movimento do corpo não tão atlético de Alanda, foi preciso, digno de um praticante de artes marciais.
– Eu aceito. Que seja assim. – Disse olhando para Fagner e depois repetiu as mesmas palavras olhando para o pentagrama desenhado no chão com a voz firme. – Que seja assim.
Fagner parecia não acreditar naquilo tudo. A corda agora pendia cortada presa ao pescoço do animal, mas ao olhar mais atentamente para o bicho notou também que na nuca os pelos tinham sido raspados de maneira que o local do golpe fosse atingido com maior precisão.
Olhou ao redor e sentiu uma breve repugnância por estar ali, dentro daquele símbolo. Deu alguns passos para trás e se sentou ali na grama molhada. Olhava Alanda. Ela agora tirava o manto escuro, o dobrou e o colocou juntamente com a faca numa mochila que tinha passado despercebida. Apagou as várias velas enquanto balbuciava algumas palavras em silêncio e Fagner não sentiu a menor curiosidade de saber quais eram e depois seguiu até a caixa de som, avaliou seu estado e balançou a cabeça negativamente. Retirou o pendrive.
– Você me deve uma caixa acústica. – Disse cinicamente Alanda e se aproximou bastante deixando sua virilha bem próximo à Fagner que permaneceu em silêncio que a olhava em silêncio. – Vamos aniversariante. Seu presente está aqui na sua frente. – Cedeu a mão como apoio, mas Fagner recusou.
Alanda não tinha um rosto feio. Mesmo ali, olhando-a sob aquele ângulo, com a fraca iluminação que restou no local, os traços ainda tornavam sua face atraente. O problema não era ela e sim ele, Fagner, o pegador galinha que tinha sido domado, subjugado. Ele que detestava compromissos que durassem mais de três meses. Ele que se achava o garanhão da cidade, agora laçado e domado. Reconheceu que subestimara a inteligência de Alanda, e que ela orquestrou tudo em seus mínimos detalhes: O animal que comprara com aquelas características; o recado que mandou por Gleison; os objetos que preparou e utilizou ali, até mesmo a precisão do seu golpe que certamente um leigo sem o devido treinamento, não executaria tão bem. Até mesmo o local onde o golpe seria desferido havia sido marcado com antecedência. Não soube dizer se ela seria capaz de degolar o bicho com apenas um golpe, mas não duvidou que acontecesse. Três golpes, com certeza. O bicho iria cair, seu sangue invadindo o pentagrama, a cabeça erguida por Alanda respingando gotas vermelhas em seu rosto, e o que aconteceria depois? Uma cabeça por outra cabeça? Uma oferecida para que uma outra fosse reclamada?
– Vamos amor. Temos um contrato a selar e se inicia hoje mesmo. – Disse Alanda se afastando e seguindo na direção do muro.
Olhando confuso para o muro e depois para o caminho que tinha chegado até ali, Fagner não compreendeu até que Alanda apontou duas lacunas que serviriam de apoio para escalar o muro de dois metros de altura. Se aproximou fazendo questão de contornar o cal branco do desenho no chão e Alanda riu.
– Não tem problema meu amor. Está… desligado, digamos assim.
Fagner não lhe deu ouvidos e evitou pisar naquele desenho amaldiçoado. Alanda riu ainda mais e Fagner a empurrou no muro e segurou seus braços. Um tipo de gesto que fizera outras vezes em outras situações. Era bastante excitante falar tão próximo e suas namoradas gostavam. Naquele momento, entretanto, sentiu imenso desprezo.
– Eu não sou seu amor. Nunca serei seu amor. Toda essa palhaçada não é por amor. Eu vou lhe comer pensando numa puta qualquer, e outra coisa, não vou ser gentil. – Disse rispidamente Fagner. As palavras saíram baixas, moídas por entre os dentes.
Alanda o olhou fixamente com um sorriso e puxou os braços com força.
– Nossa. Fiquei toda molhada agora. – Respondeu com cinismo e soprou um beijo. Olhou para o alto, colocou o pé na fenda, deu um impulso e alcançou a outra lacuna. Logo estava sentada no alto do muro. Viu que Fagner olhava toda aquela cena e para o animal paciente no centro. Como se adivinhasse seus pensamentos Alanda se adiantou.
– Não se preocupe am… meu bem. Um faxineiro vai limpar toda essa bagunça. – Disse Alanda e olhou para os arbustos e ao perceber isso, Fagner olhou para a mesma direção. Pensou ter visto um movimento estranho nos arbustos, mas não conseguiu ver nada. Julgou ter sido apenas o vento.
Escalou o muro, sem muita dificuldade e após um último olhar pro cenário de seu maior pesadelo real de toda sua vida, pulou para o outro lado da rua. Ergue-se sentido os joelhos reclamarem do impacto, e novamente foi surpreendido. Alanda tirou uma chave do bolso e pressionou o botão do alarme. Um som de bip soou e ao se virar, Fagner percebeu que era de um veículo estacionado.
– Peguei emprestado de minha mãe. Emprestado sem ela saber, claro.
– Esse pesadelo não acaba. Infeliz aniversário Fagner. – Disse Fagner para Alanda. Era a débil voz de um derrotado.
Alanda não lhe deu importância. Abriu a porta do Ford Ka de cor prata, e logo deu partida no veículo.
Vamos. – Disse Alanda abrindo a porta do carona e o tom usado foi mais que um pedido. Foi quase uma ordem. Fagner percebeu. Abriu a porta e sentou-se calado. A olhou com ódio, mas mesmo seu ódio estava enfraquecido por reconhecer sua derrota. Alanda abriu o porta luvas e de lá tirou uma garrafa de conhaque pela metade, virou-a para si e tomou dois ou três goles no gargalo. Tampo-a e jogou-a no colo de Fagner.
– Ninguém precisa de um deprimido sóbrio, quando se tem uma fêmea e uma garrafa ardente por perto. – Provocou Alanda
A frase o atingiu em cheio, e Alanda gostou do que viu. Misto de desprezo, rancor, mas que no fim ganhou o contorno de um sorriso indeciso e foi o que ela precisava. Ela praticamente voou em sua boca e o devorou com seus lábios. Ele tentou a afastar e ela mordeu seu lábio inferior para então se afastar rindo maliciosamente.
– Você disse que não vai ser gentil. Espero que não seja.
A dor latejava levemente no lábio e Fagner levou os dedos até o local. Não estava ferido mas estava completamente molhado. Pegou a garrafa e tomou dois longos goles. Imaginou desferindo um golpe certeiro com ela na cabeça de Alanda ou quem sabe puxar o volante do carro quando estivesse em velocidade, em direção a um poste de iluminação. Pensou em envolver suas mãos em seu pescoço quando a estivesse possuindo, e mesmo assim não soube se teria coragem de fazer algo do tipo. Pensou que a vingança podia ser de outras maneiras e de formas bem mais simples. Uma delas era que Alanda presenciasse sua felicidade ao lado de outra pessoa e quem sabe até uma de suas amigas. O carro agora pegou uma das rodovias que se afastava da cidade e ele já sabia em qual lugar passaria a noite.
Tomou mais dois goles e sentiu-se superando aquele pesadelo. Não faria amor, também não faria nada odioso, mas sobretudo não desejava estar sóbrio e lembrar dos momentos que faria sexo com Alanda. Já estava fazendo planos: Passar aquela noite indesejada, com alguém indesejado, beber uma quantidade também indesejada e acordar no outro dia jogando fora no vaso do banheiro, o que sobrou do estômago, junto das lembranças com quem tinha passado a noite. Seu celular o despertou do desejo de mais outra dose de conhaque e viu no visor a foto de Gleison, o amigo tubarão. Desligou a ligação e sorriu satisfeito por ter feito aquilo. Um minuto após outra ligação e era o “amigo” novamente.
– Quem é? – Perguntou Alanda.
– Ninguém. Só um amigo tubarão. – Respondeu e desligou o celular.
– Quem? Tubarão? Gleison Tubarão? – Perguntou Alanda surpresa. Ela já conhecia aquele apelido.
– Sim. Seu menino de recados.
A face de Alanda pareceu morrer e perder toda a cor. Soube de imediato que algo tinha dado errado, pois Gleison não tinha seu telefone e não iria ligar pra Fagner àquela hora.
– Atenda. – Ordenou Alanda.
– Atender como, se eu já desliguei. – Respondeu Fagner e sua voz já demonstrava embaraço provocada pelo efeito das doses de conhaque. Alanda arrebatou a garrafa em seu colo e arremessou pela janela. O som dos cacos no asfalto foi alto apenas por um instante.
– Ligue essa porra e atenda. – Esbravejou. Fagner recompôs-se, voltando a sobriedade. Ligou o celular que tocou no mesmo instante.
– Tubarão safado… – Atendeu Fagner com falsidade exagerada e a alegria se dissipou após ouvir o tom desesperado na voz do amigo. Olhou para Alanda e passou o celular para ela. – É. É pra você.
– Que porra foi… – Alanda berrou e parou a frase no meio. Suas mãos começaram a tremer no volante e o carro começou a ultrapassar a faixa central que dividia a pista. Em seus olhos que fitavam Fagner estava estampado o desespero.
– Não. Não. Não é possível. Não. – Os lábios de Alanda agora tremiam. Ela olhava para Fagner e continuava negando. Fagner não se conteve. Algo estava muito errado para Alanda agir daquele jeito e ele não esperou, pegou o celular e acionou o viva voz, e ficou estarrecido com a última frase que ouviu.
– … chão pegou fogo e o bode morreu queimado.
Foi uma boa grana paga com antecedência, mas também havia a promessa de um amasso, quem sabe algum dia. Ele claro, que não ia liberar, mesmo sabendo do sufoco que Fagner estava recebendo agora. Quando acabou de pular o muro e se deparou dentro do cemitério municipal, com todos aqueles símbolos desenhados e o bode amarrado ao centro, teve vontade de subir o muro de volta e sair correndo dali.
– Que diabos é tudo isso assim? – Perguntou Gleison. – Isso é um tipo de… ri-tual?
– Claro que não. – Mentiu Alanda e fingiu estar ofendida pela pergunta. – Eu sou maluca, mas tenho juízo. Só vou pregar uma peça em Fagner. Ele tem que pensar que vai acontecer de verdade, entendeu. Agora, tarde da noite, no cemitério, você fica falando esse nome, tome cuidado, que o dono pode aparecer pra você.
– Cruz credo, Alanda. Eu hein. – Disse Gleison fazendo o sinal da cruz. – Não quero ver ninguém não.
– Eu lhe paguei não foi pra ficar com medinho. Pegue essa câmera e vá logo pro seu lugar, atrás daquele arbusto. – Disse Alanda entregando para Gleison uma pequena maquina filmadora e apontou pra uma moita que tinha um melhor posicionamento e visão daquela área.
Gleison presenciou e filmou tudo. Desde os primeiros atos em que Alanda jogava um tipo de líquido no animal enquanto o fazia percorrer várias vezes o desenho do símbolo, até a hora final em que ela e Fagner saltaram o muro. Reconheceu que várias vezes teve medo de algo dar errado e a encenação fosse real. E as vozes da caixa, como eram medonhas. Várias vezes se arrepiou de medo. Não acreditou quando Fagner apareceu todo suado pelos arbustos e descobriu tudo aquilo que estava acontecendo, e reconheceu que gostou de filmar sua angústia e principalmente dar um close em sua cara de derrotado.
Ser deixado ali sozinho foi a pior parte. Tinha acertado com Alanda para fazer uma faxina no local. Cobrir o símbolo com terra, levar as velas e tirar o bode dali. Certamente cumpriria a sua parte do trato, mas não naquela hora da noite. Iria sair correndo dali, pois estava passando mal de tanto medo por ter ficado sozinho naquele lugar. No dia seguinte acordaria bem cedo e daria um jeito naquilo tudo, e caso alguém o visse, inventaria que seu animal fugiu e foi justamente comer a grama do cemitério. Mentira deslavada e cabeluda tanto quanto o bicho, riu consigo mesmo. A ponta de medo se dissipou um pouco e já estava indo pular o muro e tudo deu errado. Inexplicavelmente tudo aconteceu.
Um vento quente soprou fazendo as folhas se arranharem umas nas outras, e mesmo aquecido, aquele ar lhe deu calafrios. Teve a impressão de ouvir passos se aproximando, lentos, amassando as folhas secas do caminho entre os arbustos. Teria chamado por Fagner ou Alanda, quando algo chamou sua atenção. Os pavios das velas começaram a fumegar como se tivessem sido recém apagados, crepitaram faiscantes como velas de aniversário e, umas após uma lá estavam as velas iluminando as sombras novamente. As vozes terríveis voltaram e Fagner pulou sentindo o coração lhe martelar o peito. Teve vontade de se aproximar para saber como ela tinha ligado e o que viu arrancou o chão de seus pés, não havia pendrive inserido no slot da caixa destroçada e o compartimento de bateria estava danificado e vazio, ainda assim as vozes continuavam, pareciam rir de sua incredulidade. O grande bode que estava quieto até aquele momento, pareceu despertar de seu sono e agora berrava amedrontado, mexendo orelhas, e cavando inquieto o chão. As vozes na caixa ficaram mais altas e ouviam-se agora gritos dolorosos, choro e risos desesperados. Gleison queria correr, mas estava paralisado, indeciso entre passar pelo símbolo no chão para alcançar o muro ou voltar e seguir pelo caminho do cemitério. Se decidiu tarde demais. Todo o sacrifício se passou por seus olhos.
O vento soprou ainda mais forte gritando nas folhas num longo gemido, mas as chamas continuavam firmes, como se nenhuma brisa às incomodasse. Houve um clarão seguido do som chiado de pólvora em combustão quando todas as velas acesas caíram num único instante. A fumaça branca se ergueu numa coluna branca e o bode berrava de dor. As linhas brancas que desenhava o pentagrama estavam misturadas com pólvora e no centro onde se encontrava a grande quantidade, atingiu o animal. O líquido que Alanda o banhou era inflamável e agora o bode negro tornara-se uma pira amarela flamejante que saltava e gritava preso dentro da circunferência do desenho. A própria grama coberta pelas linhas que iam e vinham estava ardente em chamas fazendo um rastro amarelo destacando o símbolo.
Os berros do bode ficavam cada vez mais estridentes e longos e a fumaça que se erguia do seu corpo tornou-se negra empesteando o ar com um odor de carne queimada. Os berros cessaram e passou a ser ouvido sua respiração profunda quando ele desabou sobre os próprios pés. Gleison virou-se e correu e logo estava passando pelos túmulos e covas e não teve medo, apenas desejava não estar ali. Saltou o muro da entrada, e ainda correndo, decidiu avisar Alanda. Não tinha o número dela, mas sabia com quem ela estava agora. Procurou o número de Fagner, tentou várias vezes e enfim o amigo atendeu. Não conseguiu dizer a ele o que aconteceu. Não teve coragem. Pediu gritando para falar com Alanda e quando ouviu ela atender, desabafou gritando:
– Aconteceu Alanda. A coisa aconteceu. O bicho morreu queimado. – Gleison desesperado arquejava e soluçava. – Passos. Vozes na caixa. As velas se acenderam e caíram na linha branca. Teve fogo, fumaça. O bicho se incendiou. Todo o chão pegou fogo e o bode morreu queimado.
O som da ligação ficou diferente mas, ainda podia ouvir Alanda negando o ocorrido. O ouviu a voz de Fagner perguntar o que ia acontecer e uma explosão de aço se chocando e estilhaçando, rugiu nos ouvidos de Gleison, que o afastou num gesto brusco. Fez uma careta olhando o celular e ao colar no ouvido novamente a ligação tinha caído, deixando um vazio sepulcral que logo se apossou do coração de Gleison. Ele no fundo sabia o que tinha acontecido.
– Não é possível. Não, não. Não é possível. – Dizia Alanda sem parar.
– A culpa é sua. Toda sua, maldita. O bicho morreu, e o que vai acont…
Fagner foi pego de surpresa. A sua última surpresa daquela noite infeliz e a última de sua vida. Houve o impacto, e o seu corpo foi lançado violentamente para frente, ao mesmo tempo que seu pescoço encontrava o pára-choque traseiro de um caminhão que surgiu estilhaçando o para brisa. O golpe instantâneo e violento tirou sua vida esmagando sua traquéia e quebrando-lhe o pescoço, fazendo sua cabeça girar para trás presa apenas pelo que restou de sua nuca destroçada. Alanda também sentiu o impacto mas fora salva pelo airbag que inflara no volante e, milagrosamente, teve a sorte do pára-choque apenas ter atingido apenas o lado do carona. O lado onde Fagner estava sentado. Alanda tocou o rosto se certificando se estava ferida sentindo o ardor causado pelo impacto. Abriu a porta do carro e saiu ainda sentindo tonturas. Avaliava o prejuízo e como sua mãe de temperamento explosivo, iria receber aquela notícia, a xingaria chamando-a de irresponsável e iria perguntar com quem ela estava e então Alanda lembrou-se de Fagner. Olhou para dentro do carro e gritou levando a mão à boca, ao ver entre os destroços a respiração borbulhante vermelha que transbordava do local onde deveria estar a cabeça de Fagner. Suas pernas perderam as forças e ela caiu no asfalto, lutando contra a escuridão. Percebeu que um forte odor tomou o local, e por ironia, aquele cheiro evitou que ela desmaiasse. Em algum lugar do veículo a gasolina gotejava forte, houve o ruído de fagulhas e logo chamas ganharam vida e se alastravam rápido.
O calor se tornou insuportável e ela se afastou para longe. Queria pedir ajuda, mas não havia ninguém próximo ou algo a ser feito. Olhou para as árvores iluminadas pelo fogo que agora estava alto e pensou ter ouvidos gritos estridentes baixos, seguidos de risadas. Uma sombra de desespero a possuiu. Um som ecoou alto vindo de todos os lugares. Um longo e doloroso balido, prolongado até tornar-se um grito humano. Correu pelo asfalto, perdida, sem senso de direção, apenas para fugir daquele lugar, mas levou consigo aquele último grito. Um grito sobrenatural, impossível de ser dado, e mesmo distorcido por sua dor, ela sabia a quem pertencia.
– Fagner. Fagner… – Balbuciava sem parar por entre soluços e lágrimas.
A noite toda voou rápido em seus pensamentos. E mais soluços lhe atingiram por lembrar que nem mesmo o parabenizara pela data de nascimento. Vozes riram. Várias delas. Sarcásticas, invadindo seus pensamentos parecendo vir de todos os lugares ao seu redor e ela se lembrou da medonha coincidência. O presente que alguém – ela – ofertara a Fagner. A morte como presente pela data de nascimento.
– Fagner, meu amor. Me perdoe. Por favor, me perdoe.
As vozes continuaram rindo e gargalhando. Durante muito tempo.
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